quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Partiu há 25 Anos! Quanta saudade, Zeca! Fazes Falta!








Barreiro, 4 de Outubro de 1967
(Quarta-feira)

Segundo dia de aulas.
Continua o desassossego, com o pessoal a trocar beijos, abraços e confidências, depois desta longa separação que foram 3 meses e meio de férias. Estávamos todos fartos do verão, com saudades uns dos outros. A sala é a mesma do ano passado, no 1º andar e cheirava a nova, tudo encerado e polido, apesar do material já ser mais do que velho.

Somos o 7.º A e como não chumbou nem veio ninguém de novo, a pauta é exactamente igual à do ano passado. Eu sou o n.º 34, e fico sentada na segunda fila, do lado da janela, cá atrás, que é o lugar dos mais altos.

Hoje tivemos, pela primeira vez, Organização Política e apareceu-nos um professor novo, acho que é a primeira vez que dá aulas em Setúbal, dizem que veio corrido de um liceu de Coimbra, por causa da política.

Já ontem se falava à boca cheia dele, havia malta muito excitada e contente porque dizem que ele é um fadista afamado. Tenho realmente uma vaga ideia de ouvir o meu tio Diamantino falar dele, mas já não sei se foi por causa da cantoria se por causa da política.

A Inês contou que ouviu o pai comentar, em casa, que o homem é todo revolucionário, arranja sarilhos por todo o lado onde passa. Ela diz que ele já esteve preso por causa da política, é capaz de ser comunista. Diferente dos outros professores, é de certeza.

Quando entrou na sala, já tinha dado o segundo toque, estava quase no limite da falta. Entrou por ali a dentro, todo despenteado, com uma gabardine na mão e enquanto a atirava para cima da secretária, perguntou-nos:
- Vocês são o 7.º A, não são? Desculpem o atraso mas enganei-me e fui parar a outra sala. Não faz mal. Se vocês chegarem atrasados também não vos vou chatear

Tinha um ar simpático, ligeiro, um visual que não se enquadrava nada com a imagem de todos os outros professores. Deu para perceber que as primeiras palavras, aliadas à postura solta e descontraída, começavam a cativar toda a gente. A Carolina virou-se para trás e disse-me que já o tinha visto na televisão, a cantar Fado de Coimbra.

Realmente o rosto não me era estranho. É alto, feições correctas, embora os dentes não sejam um modelo de perfeição e é bem parecido, digamos que um homem interessante para se olhar. O Artur soprou-me que ele deve ter uns 36 anos e acho que sim, nota-se que já é velho. Depois das primeiras palavras, sentou-se na secretária, abriu o livro de ponto, rabiscou o que tinha a escrever e ficou uns cinco minutos, em silêncio, a olhar o pátio vazio, através das janelas da sala, impecavelmente limpas.

Enquanto ele estava nesta espécie de marasmo nós começámos a bichanar uns com os outros, cada um emitindo a sua opinião, fazendo conjecturas. Às tantas, o bichanar foi subindo de tom e já era uma algazarra tão grande que parece tê-lo acordado. Outro qualquer professor já nos teria pregado um raspanete, coberto de ameaças, mas ele não disse nada, como se não tivesse ouvido ou, melhor, não se importasse. Aliás, aposto que nem nos ouviu. O ar dele, enquanto esteve ausente, era tão distante que mais parecia ter-se, efectivamente, evadido da sala. Quando recomeçou a falar connosco, em pé, em cima do estrado, já tinha ganho o primeiro round de simpatia.

Depois, veio o mais surpreendente:

- Bem, eu sou o vosso novo professor de Organização Política, mas devo dizer-vos que não percebo nada disto. Vocês já deram isto o ano passado, não foi? Então sabem, de certeza, mais que eu.

Gargalhada geral.

- Podem rir porque é verdade. Eu não percebo nada disto, as minhas disciplinas, aquelas em que me formei, são História e Filosofia, não tenho culpa que me tivessem posto aqui, tipo castigo, para dar uma matéria que não conheço, nem me interessa. Podia estudar para vir aqui desbobinar, tipo papagaio, mas não estou para isso. Não entro em palhaçadas.

Voltámos a rir, numa sonora gargalhada, tipo coro afinado, mas ele ficou impávido e sereno. Continuava a mostrar um semblante discreto, calmo, simpático.

- Pois é, não vou sobrecarregar a minha massa cinzenta com coisas absolutamente inúteis e falsas. Tudo isto é uma fantochada sem interesse. Não vou perder um minuto do meu estudo com esta porcaria.

Começámos a olhar uns para outros, espantados; nunca na vida nos tinha passado pela frente um professor com tamanha ousadia.

- Eu estudaria, isso sim, uma Organização Política que funcionasse, como noutros países acontece, não é esta fantochada que não passa de pura teoria. Na prática não existe, é uma Constituição carregada de falsidade. Portugal vive numa democracia de fachada, este regime que nos governa é uma ditadura desumana e cruel.

Não se ouvia uma mosca na sala. Os rostos tinham deixado cair o sorriso e estavam agora absolutamente atónitos, vidrados no rosto e nas palavras daquele homem ímpar. O que ele nos estava a dizer é o que ouvimos comentar, todos os dias, aos nossos pais, mas sempre com as devidas recomendações para não o repetirmos na rua porque nunca se sabe quem ouve. A Pide persegue toda a gente como uma nuvem de fumo branco, que se sente mas não se apalpa.

- Repito: eu não percebo nada desta disciplina que vos venho leccionar, nem quero perceber. Estou-me nas tintas para esta porcaria. Mas, atenção, vocês é outra coisa. Vocês vão ter que estudar porque, no final do ano, vão ter que fazer exame para concluírem o vosso 7.º ano e poderem entrar na Faculdade. Isso, vocês têm que fazer. Estudar. Para serem homens e mulheres cultos para poderem combater, cada um onde estiver, esta ditadura infame que está a destruir a vossa pátria e a dos vossos filhos. Vocês são o amanhã e são vocês que têm que lutar por um novo país.

Não vão precisar de mim para estudar esta materiazinha de chacha, basta estudarem umas horas e empinam isto num instante. Isto não vale nada. Eu venho dar aulas, preciso de vir, preciso de ganhar a vida, mas as minhas aulas vão ser aulas de cultura e política geral. Vão ficar a saber que há países onde existem regimes diferentes deste, que nos oprime, países onde há liberdade de pensamento e de expressão, educação para todos, cuidados de saúde que não são apenas para os privilegiados, enfim, outras coisas que a seu tempo vos ensinarei.

Percebem? Nós temos que aprender a não ser autómatos, a pensar pela nossa cabeça. O Salazar quer fazer de vocês, a juventude deste país, carneiros, mas eu não vou deixar que os meus alunos o sejam. Vou abrir-lhes a porta do conhecimento, da cultura e da verdade. Vou ensinar-lhes que, além fronteiras, há outros mundos e outras hipóteses de vida, que não se configuram a esta ditadura de miséria social e cultural.

Outra coisa: vou ter que vos dar um ponto por período porque vocês têm que ter notas para ir a exame. O ponto que farei será com perguntas do vosso livro que terão que ter a paciência de estudar. A matéria é uma falsidade do princípio ao fim, mas não há volta a dar, para atingirem os vossos mais altos objectivos. Têm que estudar. Se quiserem copiar é com vocês, não vou andar, feito toupeira, a fiscalizá-los, se quiserem trazer o livro e copiar, é uma decisão vossa, no entanto acho que devem começar a endireitar este país no sentido da honestidade, sim porque o nosso país é um país de bufos, de corruptos e de vigaristas.

Não falo de vocês, jovens, falo dos homens da minha idade e mais velhos, em qualquer quadrante da sociedade. Nós temos sempre que mostrar o que somos, temos que ser dignos connosco para sermos dignos com os outros. Por isso, acho que não devem copiar. Há que criar princípios de honestidade e isso começa em vocês, os futuros homens e mulheres de Portugal. Não concordam?

Bem, por hoje é tudo, podem sair. Vemo-nos na próxima aula.


Espantoso. Quando ele terminou estava tudo lívido, sem palavras. Que fenómeno é este que aterrou em Setúbal?

Já me esquecia de escrever. Esta ave rara, o nosso professor de Organização Política, chamava-se


José Afonso.

( encontrado na net )

28 comentários:

Andradarte disse...

Tive o privilegio de privar com ele
na ilha da Armona, na Fuzeta...
Era assim mesmo...sempre revoltado
com o 'sistema'....Ele influenciou o lado para onde descaí....
Obrigado pelo texto...
Beijo

AC disse...

Zeca, uma referência para sempre!
Com ele a utopia estava sempre viva.

Bj

João Roque disse...

Perfeitamente fabuloso, este texto.
Obrigado pela partilha.

Mar Arável disse...

Maior que o pensamento

Filoxera disse...

Há vidas que perduram na eternidade. O Zeca deixou-nos a sua companhia e influência, que não têm prazo.
Beijinhos.

Zé Povinho disse...

Não imaginava sequer o Zeca como professor de OPAN. Recordo-me dele, um pouco antes disto, como professor de História na Beira - Moçambique...
Abraço do Zé

Idanhense sonhadora disse...

Eu também tive o "meu privilégio " !!!Ouvi e vi o Zeca cantar os "Vampiros "na Associação Académica de Medicina ,em Lisboa ,na cave do Hospital de Santa Maria ,no tempo da "outra senhora "! Era considerada por nós um local seguro devido ao facto de ficar no hospital ; era o último reduto quando havia cargas policiais sobre a malta . Então foi escolhido para aí o Zeca cantar ...Nunca esquecerei e já lá vão muitos anos ...
ZECA ,até sempre companheiro...
Quina

Elvira Carvalho disse...

Já conhecia este texto que me enviaram por email. Mas é sempre bom relê-lo. De resto foi uma maneira de conhecer melhor alguém que sempre admirei.
Um abraço

Fernando Santos (Chana) disse...

Bela texto de homenagem a Zeca Afonso...Espectacular....
Zeca Sempre!

Cumprimentos

Unknown disse...

Parabéns pelo texto e também por ter tido a felicidade de ter o José Afonso como professor.
Já tinha lido hoje o mesmo texto no blogue do pinguim com a devida nota de origem.
Foram dias de intensa homenagem ao poeta e cantor.
Esperamos que o seu sonho de esperança e liberdade não morra nunca na gaveta dos políticos.
Deixei de vir aqui porque não me deixava e aparecia a informação de perigo.
Espero que tenha resolvido tudo.

Anónimo disse...

Recordar e nunca esquecer.

Hoje e sempre Zeca Afonso!

jorge esteves disse...

Foi enorme esse previlégio, amiga!
E o nosso, o geral, aquele que é apenas, ou quase, só de ouvido, esse, também é enorme! E assim será sempre.

Lilá(s) disse...

Olá
hoje entrei sem ameaças do tal vírus! homenagear o Zeca é sempre tempo, para sempre recordarei o último espectáculo a que assisti no Coliseu...
Bjs

GS disse...

Querida amiga!

Feliz Dia, Mulher!

Um beijo,

São disse...

A autoria do texto é da minha colega de Liceu e amiga HÉLIDA.

Um abraço

Elvira Carvalho disse...

Passei por aqui. Gosto tanto deste layout...
Um abraço

Anónimo disse...

O que faz falta
é dar poder à malta,
o que faz falta.
O que faz falta
é dar poder à malta!

Tudo de bom.

Bem hajas.

:)

helia disse...

Zeca Afonso partiu ! Mas a sua música é eterna!E nós recordamo-lo sempre com muita saudade

helia disse...

Zeca Afonso partiu ! Mas a sua música é eterna!E nós recordamo-lo sempre com muita saudade

Ana disse...

Tu também fazes falta ! Por onde anda o vento ?
Beijo *

São disse...

TUDO BEM?

Boa semana.

Branca disse...

Quando li este texto a primeira vez há uns meses atràs fiquei comoventemente maravilhada.

Tive um professor que aproveitou o ensino dos Lusíadas para nos desmistificar a História que se ensinava na altura, mas professor como este que ensinava vida assim e honestidade é um exemplo muito particular e que marcou todos com quem se cruzou, marcou um país inteiro, apesar da sua enorme simplicidade, tão grande quanto a sua generosidade e inteligência.

Como diz o Mar Arável: "Maior que o pensamento."

Beijinhos para ti Isabel, de grande saudade.

Também eu tenho andado afastada, há outras coisas na vida e a disponibilidade ou disposição nem sempre nos acompanham, mas nunca me esqueço de ti.

Com amizade
Branca

Elvira Carvalho disse...

Nem a Páscoa a faz regressar?
Abraço e Páscoa Feliz

Idanhense sonhadora disse...

Isa , espero que tudo esteja bem consigo .Desejo-lhe uma boa Páscoa ,
Beijo
Quina

Idanhense sonhadora disse...

Isa , espero que tudo esteja bem consigo .Desejo-lhe uma boa Páscoa ,
Beijo
Quina

Elvira Carvalho disse...

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Passei para desejar uma Santa e feliz Páscoa. Que o espirito da Páscoa perdure em toda a humanidade, para que se construa um mundo mais justo.
Abraço

Petrus Monte Real disse...

Isamar,

Li várias vezes o admirável texto!
Nele está um pouco de nós e de todos aqueles que estudaram OPAN e viveram situações idênticas às descritas.
Muito grato por tudo!

Isamar,
nesta tarde beirã
de céu cinzento (parece que associado á quadra que vivemos)
votos de uma feliz Páscoa!
Grande abraço

Elvira Carvalho disse...

Alô... Está aí alguém?
Um abraço